sexta-feira, 11 de novembro de 2011

As manifestações culturais de resistência aos governos autoritários nas décadas de 1960 e 1970

Alambre. Comunicación, información, cultura. Nº 1, marzo de 2008.

 
Os anos 1960 e sua herança no Brasil *
Por Marcelo Ridenti


Introdução

Neste pequeno livro, apresento ao público hispano-americano aspectos de minhas pesquisas recentes sobre cultura e política na sociedade brasileira a partir dos anos 1960. O leitor certamente encontrará pontos de contato com o que se passou em outros países da América Latina no mesmo período: golpe militar, longa ditadura, censura, lutas sociais, guerrilha, efervescência cultural, enfim, uma aproximação entre arte, vida e política nos anos 1960/70; a seguir o conturbado processo de redemocratização, acompanhado do crescente e devastador avanço neoliberal.

Chico Buarque y Caetano Veloso en una manifestación en los '60.
Para pensar esse longo período, destaco a trajetória dos artistas Chico Buarque e Caetano Veloso, em primeiro lugar porque eles são muito conhecidos também fora do Brasil, quer pelo talento, quer pela presença freqüente nos meios de comunicação de massa e pela inserção privilegiada na indústria cultural. Em segundo lugar e principalmente, porque eles são referenciais para a compreensão dos caminhos de uma geração para a qual as artes, a cultura, a política e a vida cotidiana enlaçaram-se de modo original e criativo na década de 1960, não só no Brasil, mas em escala planetária.

Chico Buarque e Caetano Veloso jamais foram militantes políticos; entretanto, o percurso de suas vidas e obras, até os dias de hoje, só pode ser compreendido a partir das origens na cultura política brasileira dos anos 1960, marcada pelas lutas contra o subdesenvolvimento nacional e pela constituição de uma identidade para o povo brasileiro, como parte de um processo de libertação dos países do chamado “Terceiro Mundo”, particularmente da América Latina.

No primeiro capítulo, procuro situar o meio artístico e intelectual brasileiro em seu contexto sócio-político ao longo do tempo, das ondas de revolta e revolução da década de 1960 até a institucionalização profissional que tenderia a afastá-lo do compromisso com as causas críticas da ordem estabelecida.

Chico Buarque y Caetano Veloso en la misma época.
Na década de 1990, Chico Buarque escreveria o breve romance Benjamim (1995a) e Caetano Veloso publicaria suas extensas memórias – que vão até o ano de 1973 – com o título de Verdade tropical (1997). São reflexões sobre a sociedade brasileira e sua inserção global na segunda metade do século XX, ao mesmo tempo em que resgatam o florescimento cultural e político dos anos 1960. Por isso essas obras foram escolhidas como ponto de partida para estudar a trajetória de seus autores.

Assim, o segundo capítulo toma como referencial uma leitura do romance Benjamim para fazer um balanço da dimensão sócio-política no conjunto das obras de Chico Buarque – canções, peças de teatro e romances – produzidas entre os anos 1960 e os 1990, período revisitado em Benjamim. O romance recoloca e atualiza o lirismo nostálgico e a crítica social, paralelamente ao esvaziamento da variante utópica da obra de Chico Buarque, expressando a perplexidade da intelectualidade de esquerda no início da década de 1990, que seria em parte superada nos anos seguintes.

O terceiro capítulo trata da brasilidade de Caetano Veloso, figura destacada do movimento tropicalista em 1967/68 e seu herdeiro de maior receptividade junto ao público até hoje. A hipótese sugerida é a de que o tropicalismo – além de levar reconhecida internacionalização para a música popular e para as artes no Brasil – é indissociável da formação político-cultural brasileira dos anos 1950/60, isto é, ele não foi uma ruptura radical com a cultura política daqueles anos, apenas um de seus frutos diferenciados. Ao encerrar o ciclo participante, o tropicalismo já indicava os desdobramentos do império da indústria cultural na sociedade brasileira, que transformaria a promessa de socialização em massificação da cultura, até mesmo incorporando desfiguradamente aspectos dos movimentos culturais contestadores.

Não se trata de fazer uma abordagem reducionista do campo estético, como se a obra de arte fosse imediatamente identificável com uma única mensagem política, que se veicularia pelas artes. Tampouco caberia o simplismo que em tudo vê o reflexo do econômico, reduzindo as criações artísticas a elementos da superestrutura ideológica e política, determinada pela infraestrutura econômica. Nos limites da proposta deste livro, não estará em foco propriamente o valor intrínseco da obra de arte, mas sua temporalidade, vale dizer, a história de uma sociedade e de um tempo pode ser contada também pela produção artística e pela trajetória de seus autores.

Os anos de romantismo revolucionário

Talvez não tenha havido um momento da história recente mais marcado pela convergência entre política, cultura, vida pública e privada que os anos 1960 - não só na sociedade brasileira, sobretudo entre a intelectualidade. Para pensar essa convergência, tenho usado a meu modo o conceito de romantismo revolucionário, formulado por Michael Löwy e Robert Sayre (1995).

Eram anos de guerra fria entre os aliados dos Estados Unidos e da União Soviética, mas surgiam esperanças de alternativas libertadoras no Terceiro Mundo, inclusive no Brasil, que vivia um processo acelerado de urbanização e modernização da sociedade. Naquele contexto, certos partidos e movimentos de esquerda, seus intelectuais e artistas valorizavam a ação para mudar a História, para construir o homem novo, nos termos de Marx e Che Guevara. Mas o modelo para esse homem novo estava no passado, na idealização de um autêntico homem do povo, com raízes rurais, do interior, do "coração do Brasil", supostamente não contaminado pela modernidade urbana capitalista, o que permitiria uma alternativa de modernização que não implicasse a desumanização, o consumismo, o império do fetichismo da mercadoria e do dinheiro. São exemplos no âmbito das artes: o indígena exaltado no romance Quarup, de Antonio Callado (1967); a comunidade negra celebrada no filme Ganga Zumba, de Carlos Diegues (1963), e na peça Arena conta Zumbi, de Boal e Guarnieri (1965); os camponeses no filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha (1963), etc. Em suma, buscava-se no passado uma cultura popular autêntica para construir uma nova nação, ao mesmo tempo moderna e dasalienada, no limite, socialista.

Eram versões de esquerda para as representações da mistura do branco, do negro e do índio na constituição da brasilidade, não mais no sentido de justificar a ordem social existente, mas de questioná-la. É a isso, em linhas gerais, que se pode chamar de romantismo revolucionário brasileiro do período, sem nenhuma conotação pejorativa. Recolocava-se o problema da identidade nacional e política do povo brasileiro, buscava-se a um tempo suas raízes e a ruptura com o subdesenvolvimento, numa espécie de desvio à esquerda do que se convencionou chamar de era Vargas, caracterizada pela aposta no desenvolvimento nacional, com base na intervenção do Estado.

Essa versão brasileira não se dissociava de traços do romantismo revolucionário da época em escala internacional: a liberação sexual, o desejo de renovação, a fusão entre vida pública e privada, a ânsia de viver o momento, a fruição da vida boêmia, a aposta na ação em detrimento da teoria, os padrões irregulares de trabalho e a relativa pobreza, típicas da juventude de esquerda na época, são características que marcaram os movimentos sociais nos anos 1960 em todo o mundo, fazendo lembrar a velha tradição romântica.

Várias circunstâncias históricas permitiram o florescimento de diversas versões do romantismo revolucionário a partir do final da década de 1950. No plano internacional, foram vitoriosas ou estavam em curso inúmeras revoluções de libertação nacional, algumas marcadas pelo ideário socialista e pelo papel destacado dos trabalhadores do campo, por exemplo, a revolução cubana de 1959, a independência da Argélia em 1962, além da guerra antiimperialista em curso no Vietnã, lutas anticoloniais na África etc. O êxito militar dessas revoluções é essencial para entender as lutas políticas e o imaginário contestador nos anos 1960: havia exemplos vivos de povos subdesenvolvidos que se rebelavam contra as potências mundiais, construindo pela ação as circunstâncias históricas das quais deveria brotar o homem novo. Especialmente a vitória da revolução cubana, no quintal dos Estados Unidos, era uma esperança para os revolucionários na América Latina.

Paralelamente, colocava-se em xeque o modelo soviético de socialismo, por ser considerado burocrático e acomodado à ordem internacional estabelecida pela guerra fria, incapaz de levar às transformações sociais, políticas e econômicas necessárias para chegar ao comunismo, portanto, aquém do necessário para a gestação do homem novo. Esse modelo seria contestado, por exemplo, de dentro das próprias estruturas partidárias comunistas na Checoslováquia, cuja chamada Primavera de Praga foi destruída pela invasão dos tanques de guerra do Pacto de Varsóvia, em 1968. Inspirador de partidos comunistas no mundo todo, como é sabido, esse modelo só viria a ruir definitivamente com a desagregação da União Soviética e o episódio emblemático da queda do muro de Berlim, em 1989.

Também o processo de "revolução cultural proletária", em curso na China a partir de 1966, parecia a setores jovens do mundo todo ser uma resposta ao burocratismo de inspiração soviética. As lutas de emancipação nacional e o distanciamento do socialismo soviético pareciam abrir alternativas libertadoras, terceiro-mundistas, para a humanidade - diferentes da polarização da Guerra Fria, entre os aliados dos Estados Unidos e os alinhados à União Soviética.

Esse terceiro-mundismo de artistas e intelectuais seria posteriormente acusado de mascarar os conflitos de classe na sociedade brasileira, espécie de trunfo dos intelectuais para ganhar poder. Esse tipo de avaliação ganhou terreno a partir do final dos anos 1970, quando alguns intelectuais procuraram fazer um acerto de contas com a experiência de engajamento imediatamente passada, praticamente descartando o nacional-popular como mero populismo: exageraram seus limites, talvez sem avaliar a fundo seus alcances, consciente ou inconscientemente supondo que a intelectualidade de esquerda dos anos 1980 tivesse alcançado um patamar superior - suposição hoje muito discutível.

Parece que a versão brasileira do terceiro-mundismo correspondeu a certo romantismo embasado socialmente nas classes médias intelectualizadas, mas ele em geral vinha acompanhado da exaltação das lutas de camponeses e operários que se colocavam na cena política no início dos anos 1960. Daniel Pécaut observou, com razão, que se deve evitar caricaturar o passado - ao mesmo tempo em que se busca desmistificá-lo, pode-se acrescentar. Para Pécaut, o suposto delírio nacional-popular organizado em torno do Estado, não teria sido "apanágio de uma minoria ávida de transformar seu 'saber' em 'poder'; apoiava-se, como frisou Michel Debrun, num sentimento difundido em muitos setores sociais. O privilégio concedido à 'libertação nacional' não tinha, então, valor algum de álibi visando a evitar a luta de classes; muito simplesmente, o Brasil vivia a hora do advento do Terceiro Mundo" (Pécaut, 1990: 180).

O terceiro-mundismo no meio intelectual ocorria em paralelo com o processo de proletarização das camadas médias da população, cada vez mais diretamente dependentes do capital, por intermédio do trabalho assalariado; por exemplo, ia ficando cada vez mais rara a figura do profissional liberal, do trabalhador intelectual autônomo, que se tornava um mero assalariado de empresas capitalistas. Desenvolvia-se aceleradamente a mercantilização universal das sociedades, o que se convencionou chamar na época de sociedade de consumo: todos os bens e serviços, inclusive culturais, eram crescentemente subordinados ao mercado, tornavam-se objetos descartáveis de consumo, numa sociedade cada vez mais claramente movida pelo poder do dinheiro.

Assim, contra a ordem então estabelecida - que mostrava sua face monstruosa na guerra do Vietnã, promovida pela maior potência mundial, os Estados Unidos, contra um país pobre e subdesenvolvido -, irromperam movimentos de protesto, resistência e mobilização política em todo o planeta, especialmente no ano de 1968: do maio libertário dos estudantes e trabalhadores franceses ao massacre de estudantes no México; da Primavera de Praga às passeatas norte-americanas contra a guerra no Vietnã; do pacifismo dos hippies, passando pelo desafio existencial da contracultura - notadamente as experiências com as drogas, tidas na época como contestação à moral e aos padrões culturais burgueses -, até os grupos de luta armada na América Latina e mundo afora.

O florescimento cultural e político internacional dos anos 1960 ligava-se a uma série de condições materiais comuns a diversas sociedades, além das especificidades locais - no caso brasileiro, em especial, as lutas pelas reformas de baseaté o advento do golpe militar de 1964 e contra a ditadura após essa data, que levaram alguns ao extremo da luta armada. Essas condições comuns estavam presentes especialmente na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, mas eram compartilhadas também por países em desenvolvimento: crescente urbanização, consolidação de modos de vida e cultura das metrópoles, aumento quantitativo das classes médias, acesso crescente ao ensino superior, peso significativo dos jovens na composição etária da população, incapacidade do poder constituído para representar sociedades que se renovavam, avanço tecnológico (por vezes ao alcance das pessoas comuns, que passaram a ter cada vez mais acesso, por exemplo, a eletrodomésticos como aparelhos de televisão, além de outros bens, caso da pílula anticoncepcional - o que possibilitaria mudanças consideráveis de comportamento), etc. Essas condições materiais não explicam por si sós as ondas de rebeldia e revolução, apenas deram possibilidade para que frutificassem ações políticas e culturais inovadoras e diversificadas, aproximando a política da cultura e da vida cotidiana, buscando colocar a imaginação no poder.

Foram características dos movimentos libertários dos anos 1960, particularmente de 1968, no mundo todo: inserção numa conjuntura internacional de prosperidade econômica; crise no sistema escolar; ascensão da ética da revolta e da revolução; busca do alargamento dos sistemas de participação política, cada vez mais desacreditados; simpatia pelas propostas revolucionárias alternativas ao marxismo soviético; recusa de guerras coloniais ou imperialistas; negação da sociedade de consumo; aproximação entre arte e política; uso de recursos de desobediência civil; ânsia de libertação pessoal das estruturas do sistema (capitalista ou comunista); mudanças comportamentais; vinculação estreita entre lutas sociais amplas e interesses imediatos das pessoas; aparecimento de aspectos precursores do pacifismo, da ecologia, da antipsiquiatria, do feminismo, de movimentos de homossexuais, de minorias étnicas e outros que viriam a desenvolver-se nos anos seguintes.

No Brasil, além dos fatores internacionais, foram principalmente aspectos da política nacional que marcaram as lutas das esquerdas. O processo de democratização política e social, com a crescente mobilização popular pelas chamadas "reformas de base" - agrária, educacional, tributária e outras que permitissem a distribuição mais equitativa da riqueza e o acesso de todos aos direitos de cidadania - foi interrompido pelo golpe de 1964. Ele deu fim às crescentes reivindicações de lavradores, operários, estudantes e militares de baixa patente, cuja politização ameaçava a ordem estabelecida. A versão populista da hegemonia burguesa já não era suficiente para organizar o conjunto da sociedade em conformidade com os interesses do capital, ameaçados pelo questionamento dos de baixo, que tomaram a iniciativa política.

O fim do sonho brasileiro revolucionário, com a vitória dos golpistas em abril de 1964, sem encontrar resistência, causou surpresa, devido à mobilização popular em busca das reformas estruturais no pré-1964, com a presença política e cultural marcante das esquerdas, notadamente do Partido Comunista Brasileiro (PCB) - que era ilegal, mas cuja atuação era consentida pelo governo Goulart. A derrota foi atribuída por muitos aos erros dos dirigentes dos partidos de esquerda, que não teriam-se preparado para resistir, desde o hegemônico e pró-soviético PCB, passando pela cristã e marxista Ação Popular (AP), pelo pró-chinês Partido Comunista do Brasil (PCdoB), e pela Política Operária (POLOP), até outros grupos menores. Sem contar a inação das lideranças trabalhistas e nacionalistas, como o próprio presidente deposto, João Goulart. Foi-se formando uma corrente de opinião difusa em inúmeros segmentos da esquerda, que colocava a necessidade de constituir uma vanguarda realmente revolucionária, que rompesse com o imobilismo e propusesse a luta armada contra a força bruta do governo, avançando decisivamente em direção à superação do capitalismo, na construção de um homem novo, enraizado nas tradições populares.

A partir de outubro de 1965, por imposição do regime, passaram a existir apenas dois partidos reconhecidos institucionalmente: a situacionista Aliança Renovadora Nacional (ARENA), e a oposição "construtiva" e moderada do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que viria a ser calada com cassações de políticos e outros mecanismos, sempre que se excedesse aos olhos dos governantes.

Fora do campo institucional - em meio ao refluxo dos movimentos populares, desmantelados pela repressão, que também golpeava duramente as organizações de esquerda - surgiu uma série de grupos guerrilheiros, cuja principal fonte de recrutamento de militantes estava no movimento estudantil, único movimento de massas que conseguiu se rearticular nacionalmente nos primeiros anos do pós-1964, lançando-se em significativos protestos de rua, especialmente em 1968.
Os inúmeros grupos guerrilheiros tinham divergências entre si: sobre o caráter da revolução brasileira (para alguns, a revolução seria nacional e democrática, numa primeira etapa; para outros, ela já teria caráter imediatamente socialista); sobre as formas de luta revolucionária mais adequadas para chegar ao poder (a via guerrilheira mais ou menos nos moldes cubanos; o cerco das cidades pelo campo, de inspiração maoísta; a insurreição popular; etc.); bem como sobre o tipo de organização política a ser construída - discutia-se muito a necessidade ou não de um partido nos moldes leninistas da III Internacional.

Mas as organizações armadas apresentavam também pontos em comum, por exemplo: valorizavam acima de tudo a ação revolucionária, contra o suposto imobilismo de partidos como o PCB; viam a economia brasileira num processo irreversível de estagnação - o desenvolvimento das forças produtivas estaria bloqueado sob o capitalismo, que aliaria indissoluvelmente os interesses dos imperialistas, dos latifundiários e da burguesia brasileira, garantidos pela força bruta dos militares. Só um governo popular, ou mesmo socialista, possibilitaria a retomada do desenvolvimento.

Como decorrência desse tipo de análise, interpretavam que estariam dadas as condições objetivas para a revolução, faltando apenas as subjetivas, que seriam forjadas por uma vanguarda revolucionária decidida a agir de armas na mão, criando condições para deslanchar o processo revolucionário a partir do campo - local mais adequado para as atividades revolucionárias, por sofrer a fundo a espoliação e a miséria e por apresentar maiores dificuldades aos órgãos repressivos. Para iniciar a guerrilha rural, seria necessário conseguir armamentos e dinheiro. Daí vários grupos terem empreendido ações urbanas, como "expropriações" a bancos e tomadas de armas do aparelho repressivo. Na formulação sintética do guerrilheiro Carlos Marighella - considerado o inimigo número um da ditadura - a escalada da guerra revolucionária seria "composta por três degraus. O primeiro é a guerrilha urbana. O segundo é a guerrilha rural. O terceiro é o exército revolucionário de libertação do povo" (1974: 39).

O caráter antidemocrático da ditadura civil-militar, iniciada com o movimento de 1964, agravou-se sobretudo nos anos posteriores à edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5), o "golpe dentro do golpe", em 13 de dezembro de 1968. Com ele, os setores militares mais direitistas - que haviam patrocinado uma série de atentados com autoria oculta, sobretudo em 1968 - lograram oficializar o terrorismo de Estado, que passaria a deixar de lado quaisquer pruridos liberais, até meados dos anos 1970. Agravava-se o caráter ditatorial do governo, que colocou em recesso o Congresso Nacional e as Assembléias Legislativas estaduais, passando a ter plenos poderes para: cassar mandatos eletivos, suspender direitos políticos dos cidadãos, demitir ou aposentar juízes e outros funcionários públicos, suspender o habeas corpus em crimes contra a segurança nacional, legislar por decreto, julgar crimes políticos em tribunais militares, dentre outras medidas autoritárias. Paralelamente, nos porões do regime, generalizava-se o uso da tortura, do assassinato e de outros desmandos. Tudo em nome da segurança nacional, indispensável para o desenvolvimento da economia, do posteriormente denominado milagre brasileiro.

Com o AI-5, foram presos, cassados, torturados ou forçados ao exílio inúmeros estudantes, intelectuais, políticos e outros oposicionistas. O regime instituiu rígida censura a todos os meios de comunicação, colocando um fim à agitação política e cultural do período. Por algum tempo, não seria tolerada qualquer oposição ao governo, sequer a do moderado MDB - que entretanto continuaria sendo o único partido legal de oposição até o fim do bipartidarismo em 1980(1). Era a época doslogan oficial: "Brasil, ame-o ou deixe-o".

Nas circunstâncias posteriores ao AI-5, as organizações que já vinham realizando algumas ações armadas ao longo de 1968 - como a Ação Libertadora Nacional (ALN) e a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) - concluíram que estavam no caminho certo, e intensificaram suas atividades em 1969. Outros grupos também passaram a não ver outro modo de combater a ditadura, a não ser pela via das armas. Com exceção do PCB, do PCdoB, da AP e dos pequenos agrupamentos trotskistas, ocorreu o que Gorender (1987) chamou de "imersão geral na luta armada", promovida por mais de uma dezena de organizações, como a Ala Vermelha, o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), o Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT), a Vanguarda Armada Revolucionária - Palmares (VAR), o Partido Operário Comunista (POC), entre outros grupos, além dos anteriormente mencionados.

Paralelamente à escalada das ações armadas, a ditadura ia aperfeiçoando seu aparelho repressivo: além dos já existentes Departamentos Estaduais de Ordem Política e Social (DEOPS), criou em junho de 1969, extra-oficialmente, a Operação Bandeirante (OBAN), organismo especializado no "combate à subversão" por todos os meios, inclusive a tortura sistemática. Em setembro de 1970, a OBAN integrou-se ao organismo oficial, recém-criado pelo Exército, conhecido como DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações/ Centro de Operações de Defesa Interna). A Marinha tinha seu órgão de "inteligência" e repressão política, o Centro de Informações da Marinha (CENIMAR), correspondente ao Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA), e ao Centro de Informações do Exército (CIE).

Assim, apesar de uma ou outra operação guerrilheira bem-sucedida, a ação policial-militar desmantelou rapidamente os grupos guerrilheiros, especialmente entre 1969 e 1971, não hesitando em assassinar e torturar seus inimigos, que não conseguiram realizar o sonho de deflagrar a guerrilha no campo. Só o PCdoB, que se abstivera de pegar em armas nas cidades, conseguiu lançar a guerrilha rural, na região do Araguaia, no sul do Pará. Entre 1972 e 1974, deu-se encarniçada luta, que culminou com a derrota dos guerrilheiros, quase todos mortos em combate ou assassinados depois de capturados, sem que se tenha notícia oficial, até hoje, do paradeiro de seus corpos.

As esquerdas enganaram-se, ao supor que o golpe implicaria a estagnação econômica. Ao contrário, representando as classes dominantes e setores das classes médias, os governos civis-militares promoveram a modernização conservadorada sociedade brasileira, o desenvolvimento econômico desigual e combinado, compondo indissoluvelmente aspectos modernos e arcaicos. Houve crescimento rápido das forças produtivas, o chamado milagre brasileiro, acompanhado da concentração de riquezas, do aumento das distâncias entre os mais ricos e os mais pobres, bem como do cerceamento às liberdades democráticas. O regime buscava sua legitimação política com base nos êxitos econômicos, sustentados por maciços empréstimos internacionais, que colocariam nos ombros das gerações posteriores o peso de imensa dívida externa.

É preciso lembrar, ainda, que a modernização conservadora pós-1964 consolidou o processo de urbanização em curso, dos mais acelerados da História Mundial: de 1950 a 1970, a sociedade brasileira passou de majoritariamente rural para eminentemente urbana, com todos os problemas sociais e culturais de tão rápida transformação. Os trabalhadores e demais despossuídos - que começavam a se aglomerar e organizar nas cidades e também no campo, reivindicando direitos - foram subjugados depois de 1964. Restou a eles o que alguns sociólogos chamam de espoliação urbana, acompanhada da violência do cotidiano nas grandes metrópoles, sem que no campo tivesse sido resolvida a questão secular da reforma agrária.

Nesse contexto, geraram-se reações políticas e culturais às transformações em escala nacional e internacional. Reações a que se podem atribuir traços românticos comuns na História recente do Brasil: resistência ao processo de industrialização, urbanização, concentração de riquezas e ausência de liberdades democráticas; combate ao dinheiro, à indústria cultural e à fetichização impostas pela sociedade de consumo do mercado capitalista; identificação com o camponês, tomado como autêntico representante do povo oprimido, cujas raízes seria preciso resgatar; escolha do campo como local para o início da revolução social; valorização da ação, da vivência revolucionária, por vezes em detrimento da teoria; e uma aproximação profunda entre arte e vida que gerou verdadeiro ensaio geral de socialização da cultura (2).

A agitação política e cultural brasileira dos anos 1960 construiu-se sobre coordenadas históricas específicas, que podem ser observadas nas sociedades que adentram definitivamente na modernidade urbana capitalista, conforme sugestão de Perry Anderson: a "intersecção de uma ordem dominante semi-aristocrática, uma economia capitalista semi-industrializada e um movimento operário semi-insurgente".

Ou seja, o modernismo caracteriza-se historicamente: 1) pela resistência ao academicismo nas artes, indissociável de aspectos pré-capitalistas na cultura e na política, em que as classes aristocráticas e latifundiárias dariam o tom; 2) pela emergência de novas invenções industriais de impacto na vida cotidiana, geradora de esperanças libertárias no avanço tecnológico; 3) e pela proximidade imaginativa da revolução social, fosse ela mais "genuína e radicalmente capitalista" ou socialista. (Anderson, 1986:18-19)

Já argumentei em outros trabalhos que as coordenadas históricas do modernismo sugeridas por Anderson estavam presentes na sociedade brasileira, do final dos anos 1950 até por volta de 1968: havia luta contra o poder remanescente das oligarquias rurais e suas manifestações políticas e culturais; um otimismo modernizador com o salto na industrialização a partir do governo Kubitschek; também um impulso revolucionário, alimentado por movimentos sociais e portador de ambigüidades nas propostas de revolução brasileira, democrático-burguesa (de libertação nacional), ou socialista, com diversas gradações intermediárias (Ridenti, 1993 e 2000).

Crítica e reintegração

Com a derrota das esquerdas brasileiras pela ditadura e os rumos dos eventos políticos internacionais, perdeu-se aproximidade imaginativa da revolução social, paralelamente à modernização conservadora da sociedade brasileira e à constatação de que o acesso às novas tecnologias não correspondeu às esperanças libertárias no progresso técnico em si. Então, ficou explícito que o modernismo temporão não bebia na fonte da eterna juventude; e o ensaio geral de socialização da cultura frustrou-se antes da realização da esperada revolução brasileira, que se realizou pelas avessas, sob a bota dos militares, que depois promoveriam a transição lenta, gradual e segura para a democracia, garantindo a continuidade do poder político e econômico das classes dominantes.

Paradoxal é que a nova ordem da ditadura - uma vez devidamente punidos com prisões, mortes, torturas e exílio os que ousaram se insurgir abertamente contra ela - soube dar lugar aos intelectuais e artistas de oposição, especialmente a partir do período da chamada "abertura" do regime, promovida durante o governo do general Geisel (1974-1978). Nos anos 1970, concomitante à censura e à repressão política, ficou evidente o esforço modernizador que a ditadura já vinha esboçando desde a década de 1960 nas áreas de comunicação e cultura, incentivando o desenvolvimento capitalista privado ou até atuando diretamente por intermédio do Estado.

As grandes redes de TV, em especial a Globo, surgiam com programação em âmbito nacional, estimuladas pela criação da Empresa Brasileira de Telecomuicações (Embratel), do Ministério das Comunicações e de outros investimentos governamentais em telecomunicações que buscavam a integração e segurança do território brasileiro. Ganhavam vulto diversas instituições estatais de incremento à cultura, como a Empresa Brasileira de Cinema (Embrafilme), o Instituto Nacional do Livro, o Serviço Nacional de Teatro, a Fundação Nacional de Arte (Funarte) e o Conselho Federal de Cultura. À sombra de apoios do Estado, floresceu também a iniciativa privada: criou-se uma indústria cultural, não só televisiva, mas também fonográfica, editorial (de livros, revistas, jornais, fascículos e outros produtos comercializáveis em bancas de jornal), de agências de publicidade etc. Tornou-se comum, por exemplo, o emprego de artistas (cineastas, poetas, músicos, atores, artistas gráficos e plásticos) e intelectuais (sociólogos, psicólogos e outros cientistas sociais) nas agências de publicidade, que cresceram em ritmo alucinante a partir dos anos 1970, quando o governo também passou a ser um dos principais anunciantes na florescente indústria dos meios de comunicação de massa. (Cf. Ortiz,1988)

Celso Frederico, seguindo trilhas abertas por Jameson (1994), dá pistas significativas para compreender a inserção de setores artísticos e intelectuais de esquerda nesse processo. Para ele, com a terceira revolução tecnológica capitalista, a partir dos anos 1960, "a esfera cultural e artística, totalmente envolvida pela mercantilização, deixou paulatinamente de ser um campo à parte dentro da vida social". Com a ocupação quase completa do espaço cultural pela lógica mercantil, tendia a diluir-se a presença da esquerda nessa área. (Frederico, 1998: 298-299).

A atuação cultural do regime civil-militar também implicou a modernização conservadora da educação, com a massificação (e degradação) do ensino público de primeiro e segundo grau, o incentivo ao ensino privado e a criação de um sistema nacional de apoio à pós-graduação e à pesquisa para as universidades, nas quais a ditadura encontrava alguns dos principais focos de resistência, que reprimiu duramente, mas sem deixar de oferecer uma alternativa de acomodação institucional. Buscava-se atender, dentro dos parâmetros da ordem estabelecida, às reivindicações de modernização que haviam levado os estudantes às ruas nos anos 1960.

A sociedade brasileira foi ganhando nova feição e a intelectualidade que combatia a ditadura aos poucos adaptava-se à nova ordem, que criava até mesmo um nicho de mercado para produtos culturais críticos, censurando seletivamente alguns deles. Universidades, jornais, rádios, televisões, agências de publicidade, empresas públicas e privadas tendiam a fornecer ótimas oportunidades a profissionais qualificados, dentre os quais se destacavam os que se consideravam de esquerda, expoentes da cultura viva do momento imediatamente anterior.

A situação não se alterou muito após a redemocratização da sociedade brasileira, a partir de 1985, que daria sinal verde para uma parcela significativa dos intelectuais de oposição comprometer-se com a Nova República. Iniciava-se um processo político que segue até nossos dias.



* Este texto de Ridenti está construido por la introducción y el primer capítulo del libro en curso de publicación en la Editorial Norma (Colombia) sobre Chico Buarque, Caetano Veloso y los años 60.

(1) Com exceção de alguns curtos períodos, a ditadura brasileira manteve aberto o Congresso Nacional, além de levar a maior parte de seus opositores a tribunais militares, por considerar importante manter uma fachada de legalidade. Foram mortas 386 pessoas e mais de dez mil foram processadas pela Justiça Militar, muitas delas foram presas e submetidas a torturas (Ridenti, 1993).

(2) O termo é de Walnice Nogueira Galvão (1994). Ver também o conhecido artigo da época de Roberto Schwarz, originalmente publicado na França (1970), onde ele se exilara.





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • ANDERSON, Perry. "Modernidade e revolução". In: Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, v. 14: 2-15, fev. 1986.

  • CALLADO, Antonio. Quarup. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

  • FREDERICO, Celso. "A política cultural dos comunistas". In: Quartim de Moraes, João (org.). História do marxismo no Brasil, III. Teorias. Interpretações. Campinas, Ed. da Unicamp: 275-304, 1998.

  • GORENDER, Jacob. Combate nas trevas - a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Ática, 1987.

  • JAMESON, F. "Reificação e utopia na cultura de massa". Crítica Marxista, vol. 1, n. 1, São Paulo, Brasiliense: 1-25, 1994.

  • LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia - o romantismo na contramão da modernidade. Petrópolis, Vozes, 1995. 

  • MARIGHELLA, Carlos. Manual do guerrilheiro urbano e outros textos. 2ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 1974.

  • ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira - cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1988.

  • PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil. São Paulo, Ática, 1990

  • RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Ed. UNESP, 1993.

  • RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro, Record, 2000.


    Nació en São Paulo, en 1959. Es profesor Titular de Sociología en la Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Autor de Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da tv (Rio de Janeiro: 2000), O fantasma da revolução brasileira (São Paulo: 1993), História do Marxismo no Brasil, vols. 5 y 6 (Campinas: 2007, en sociedad con Daniel Aarão Reis); Intellectuels et politique, Brésil-Europe (Paris : 2003, en sociedad con Elide Rugai Bastos y Denis Rolland); L'intellectuel, l'État et la Nation - Brésil-Amérique Latine-Europe (Paris : 2006, en sociedad con Elide Rugai Bastos y Denis Rolland), además de diversas publicaciones en revistas.

  • quarta-feira, 21 de setembro de 2011

    Revelando a Ditadura Entrevista com : Carlos Fico

    Carlos Fico é professor de Teoria e Metodologia da História e coordenador do Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ. Foi durante vários anos coordenador do CNRH (Centro Nacional de Referência Historiográfica), na UFOP. Autor de vários trabalhos sobre a história da Ditadura Militar, como Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil (Fundação Getúlio Vargas, 1997) e Como eles agiam. Os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia política ( Record, 2001), coordena jovens pesquisadores no "Grupo de Estudos sobre a Ditadura Militar, na UFRJ. Também é autor de Ibase: usina de idéias e cidadania e A história do Brasil (1980/1989): elementos para uma avaliação historiográfica.

    Na abertura do livro Reinventando o otimismo, o historiador Carlos Fico usa como epígrafe uma citação de Eric Hobsbawm, que explicita a importância do papel do trabalho dos historiadores: "eles contribuem, conscientemente ou não, para a criação, demolição e reestruturação de imagens do passado que pertencem, não só ao mundo da investigação especializada, mas também à esfera pública onde o homem atua como ser político".

    Esta epígrafe serve para pensar as conseqüências do trabalho sobre a ditadura militar desenvolvido por Carlos Fico (tanto nos seus livros como no "Grupo de Estudos sobre a Ditadura Militar"). Ao tornar mais explícitas as formas e estratégias de dominação político-militar da Ditadura, revelando a natureza dos papéis dos personagens históricos daquele momento (muitos dos quais ainda hoje ocupam cargos na esfera política de nosso país, inclusive tentando falsear seu envolvimento com o período militar), como o papel do conjunto da sociedade (seja a participação da comunidade civil, religiosa ou de setores da cultura), Carlos Fico acaba fornecendo um material reflexivo que torna compreensível a movimentação não só de nosso passado recente, mas também os seus desdobramentos em nossa história presente.

    A documentação da ditadura militar aos poucos vem se tornando pública, graças ao esforço e a seriedade de trabalhos como o de Carlo Fico e de sua equipe de pesquisadores. Por outro lado, há muito o que fazer para que a partir dos documentos ainda bloqueados pelo governo possa ser revelada a verdadeira face dos que detiveram o poder no país, guiados por práticas escusas e antidemocráticas que estão longe de representar os interesses da população brasileira.

    Nesta entrevista, Fico traz a público o decreto expedido no final do governo de FHC, e referendado pelo presidente Lula, que dificulta o acesso a documentos sigilosos. Na entrevista, que o historiador Carlos Fico nos concedeu por e-mail, ele fala de sua produção historiográfica e de suas recentes pesquisas sobre a Ditadura Militar.

    1 - Como surgiu seu interesse pela temática histórica do regime militar no Brasil?

    Carlos Fico: Nunca fui militante de esquerda. Meu interesse pela Ditadura Militar é apenas teórico: é possível fazer uma "História Total"? Numa única mirada, reter as esferas econômica, política, social e cultural? Com esta motivação, busquei um tema que possibilitasse o exercício teórico pressuposto: reunir tão diversos enfoques. A Ditadura pareceu tema adequado: durou apenas duas décadas e foi período momentoso. Ademais, consegui acessar documentos sigilosos, graças aos meus conhecimentos da burocracia e da legislação brasileiras. Enfim, planejo escrever, quando for bem mais velho, uma "História Geral", quimera que perturbou o "século da história" (XIX) e o início do "breve século" passado. Ditadura militar brasileira é apenas um tema.

    2 - Além de seus dois trabalhos publicados sobre a ditadura militar você desenvolve outras pesquisas sobre o mesmo período?

    Carlos Fico: Sim. A idéia é estudar a fundo todos os temas desse período. Isso significa conhecer em detalhes temas muito diversos. Por exemplo, a atividade teatral (censura, cacoetes denuncistas de parte da dramaturgia etc.), a dinâmica social (apoio da classe média urbana à Ditadura), ou a problemática econômica ("milagre econômico", adequações do modelo desenvolvimentista baseado no capital estrangeiro etc.). Trabalho com uma equipe (Grupo de Estudos sobre a Ditadura Militar da UFRJ) e me dedico ao estudo desses temas segundo um cronograma estabelecido há alguns anos. Analiso, no momento, a curiosa vida de Delfim Neto.

    3 - Já se pode falar em uma historiografia relevante sobre a ditadura militar?

    Carlos Fico: Não. A maioria dos trabalhos ainda é caudatária das vicissitudes da época. Prevalecem os depoimentos dos que lutaram (contra ou a favor) e insistem em nos transmitir suas impressões. É etapa encontradiça em todos os países que viveram fenômenos semelhantes. Memória não é história. Memória pode ser fonte, dependendo da qualidade do historiador. Documentos sigilosos emanados da Ditadura são, hoje, o material mais importante. Pena que Fernando Henrique Cardoso, com a conivência de Luiz Inácio Lula da Silva, tenha bloqueado o acesso aos documentos sigilosos. Terei de devolver o dinheiro que o governo reservou para mim com pesquisador do CNPq? Todo o meu trabalho baseia-se em documentos sigilosos... O problema do eminente sociólogo, ao que parece, não é a Ditadura, mas papéis comprometedores produzidos durante o seu governo, talvez em relação às privatizações - mas isso é especulação minha, quase uma leviandade: de fato, não sei qual é a motivação do Decreto 4.553, de 27 de dezembro de 2002.

    4 - Qual o valor para um historiador das publicações de caráter não científico, como, por exemplo, os depoimentos de presos e de perseguidos políticos pelo regime militar?

    Carlos Fico: São fontes primárias. Historiadores lidamos com fontes primárias. Algumas nada têm a dizer, outras informam uma palavra, depois de um chorrilho tedioso. Ler os depoimentos de pessoas seviciadas como algo rotineiro é uma desdita, não uma boutade.

    5 - Existem ainda arquivos importantes com ampla documentação sobre o regime militar ao qual os pesquisadores não podem ter acesso?

    Carlos Fico: Claro. Espero ter acesso a eles em breve, pioneiramente, como tive ao "Fundo Divisão de Segurança e Informações", depois de uma batalha burocrática de cinco anos. Nada se compara ao prazer de ver um documento secreto pela primeira vez. A frase é um pouco demasiosa, convenho, mas pude entender muito da vocação de meus mestres quando me percebi, prazerosamente, analisando as idiossincrasias dos melancólicos generais-presidentes e seus asseclas.

    6 - Se algum pesquisador se interessar pela ditadura militar que arquivos você recomendaria como acervos mais importantes de documentos?

    Carlos Fico: O "Fundo DSI/MJ", do Arquivo Nacional, e os acervos das delegacias estaduais de ordem política e social (DOPS). Isso se o presidente Lula revogar o Decreto 4.553.

    7 - Quando se fala em ditadura militar no Brasil a temática que mais chama a atenção é a das personalidades que morreram, dos que foram brutalmente torturados e dos que foram presos pelos militares (basta lembrar o caso Herzog e atentar para um dos arquivos mais bem organizados que é o "Tortura nunca mais"). Esse é o elemento mais importante para uma avaliação histórica da ditadura?

    Carlos Fico: Não. Não tenho um envolvimento moral ou político com a questão. Não quero parecer extremamente blasé, mas os equívocos dessa esquerda tola (que optou pela luta armada), tanto quanto a ferocidade daqueles militares oriundos de uma classe média urbana fascinada pela retórica radical da direita (vide Carlos Lacerda), interessam-me pouco. Como já disse, não sou um ex-militante de esquerda, nem, tampouco, um ex-colaborador da Ditadura que "resolveu falar", nem, tampouco, um detentor de acervos comprometedores. Qualquer do povo poderia ter obtido acesso aos documentos que pesquisei, se tivesse paciência. Apenas quero escrever uma História Geral quando me aposentar. O tema da Ditadura pareceu-me adequado.

    8 - O título do seu livro, Reinventando o otimismo, nos faz supor que existe dentro da história da tradição política brasileira um uso ideológico da idéia de que uma das marcas da brasilidade seja o otimismo. Qual o propósito desse uso para os "donos do poder"?

    Carlos Fico: Parece-me óbvio. Projetar no futuro a idéia de um país promissor elide as responsabilidades do presente. Todo governo é otimista.

    9 - Você se refere, em Reinventando o otimismo, a uma das táticas do governo Geisel, aquela de que "projetar no futuro um tempo de êxitos é, de alguma forma, garantir a aceitação do público", tal como também a idéia de que o "Brasil é o país do futuro". Até que ponto essa prática funcionou no período militar como instrumento eficaz de controle da população para fazê-la estar de comum acordo com o regime?

    Carlos Fico: Essa prática funciona sempre, sobretudo quando boa parcela do povo não tem educação política, como é o caso brasileiro. Sou muito pessimista em relação ao Brasil: Rosinha "Garotinho" e Roriz são governadores. ACM e Arruda foram reeleitos. Um subpolítico chamado Landim acaba de renunciar pela segunda vez, demonstrando a lenidade da lei em relação a parlamentares criminosos (apesar do esforço do Aecinho, que fez aprovar legislação sobre imunidade parlamentar menos cretina).

    10 - Qual o foco central de seu livro Como eles agiam. Os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e polícia política?

    Carlos Fico: Quando tive acesso aos documentos secretos da Ditadura, resolvi escrever este livro para dar logo uma visão geral do funcionamento da espionagem e da polícia política. A documentação é tão fantástica que resolvi não demorar muito escrevendo um longo tratado. Deixei os detalhes para meus orientandos, que estão pesquisando aspectos específicos como censura, tortura, corrupção e tal. Formei o "Grupo de Estudos sobre a Ditadura Militar na UFRJ". Obtive financiamento das principais agências de fomento à pesquisa e, agora, vamos produzindo nossos trabalhinhos.

    Introdução

    Introdução 
    Podemos definir a Ditadura Militar como sendo o período da política brasileira em que os militares governaram o Brasil. Esta época vai de 1964 a 1985. Caracterizou-se pela falta de democracia, supressão de direitos constitucionais, censura, perseguição política e repressão aos que eram contra o regime militar.
    O golpe militar de 1964
    A crise política se arrastava desde a renúncia de Jânio Quadros em 1961. O vice de Jânio era João Goulart, que assumiu a presidência num clima político adverso. O governo de João Goulart (1961-1964) foi marcado pela abertura às organizações sociais. Estudantes, organização populares e trabalhadores ganharam espaço, causando a preocupação das classes conservadoras como, por exemplo, os empresários, banqueiros, Igreja Católica, militares e classe média. Todos temiam uma guinada do Brasil para o lado socialista. Vale lembrar, que neste período, o mundo vivia o auge da Guerra Fria.
    Este estilo populista e de esquerda, chegou a gerar até mesmo preocupação nos EUA, que junto com as classes conservadoras brasileiras, temiam um golpe comunista.

    Os partidos de oposição, como a União Democrática Nacional (UDN) e o Partido Social Democrático (PSD), acusavam Jango de estar planejando um golpe de esquerda e de ser o responsável pela carestia e pelo desabastecimento que o Brasil enfrentava.
    No dia 13 de março de 1964, João Goulart realiza um grande comício na Central do Brasil ( Rio de Janeiro ), onde defende as Reformas de Base. Neste plano, Jango prometia mudanças radicais na estrutura agrária, econômica e educacional do país.

    Seis dias depois, em 19 de março, os conservadores organizam uma manifestação contra as intenções de João Goulart. Foi a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que reuniu milhares de pessoas pelas ruas do centro da cidade de São Paulo.

    O clima de crise política e as tensões sociais aumentavam a cada dia. No dia 31 de março de 1964, tropas de Minas Gerais e São Paulo saem às ruas. Para evitar uma guerra civil, Jango deixa o país refugiando-se no Uruguai. Os militares tomam o poder. Em 9 de abril, é decretado o Ato Institucional Número 1 (AI-1). Este, cassa mandatos políticos de opositores ao regime militar e tira a estabilidade de funcionários públicos.
    GOVERNO CASTELLO BRANCO (1964-1967) 
    Castello Branco, general militar, foi eleito pelo Congresso Nacional presidente da República em 15 de abril de 1964. Em seu pronunciamento, declarou defender a democracia, porém ao começar seu governo, assume uma posição autoritária. 
    Estabeleceu eleições indiretas para presidente, além de dissolver os partidos políticos. Vários parlamentares federais e estaduais tiveram seus mandatos cassados, cidadãos tiveram seus direitos políticos e constitucionais cancelados e os sindicatos receberam intervenção do governo militar.
    Em seu governo, foi instituído o bipartidarismo. Só estavam autorizados o funcionamento de dois partidos: Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e a Aliança Renovadora Nacional (ARENA). Enquanto o primeiro era de oposição, de certa forma controlada, o segundo representava os militares.
    O governo militar impõe, em janeiro de 1967, uma nova Constituição para o país. Aprovada neste mesmo ano, a Constituição de 1967 confirma e institucionaliza o regime militar e suas formas de atuação.
    GOVERNO COSTA E SILVA (1967-1969)
    Em 1967, assume a presidência o general Arthur da Costa e Silva, após ser eleito indiretamente pelo Congresso Nacional. Seu governo é marcado por protestos e manifestações sociais. A oposição ao regime militar cresce no país. A UNE (União Nacional dos Estudantes) organiza, no Rio de Janeiro, a Passeata dos Cem Mil. 
    Em Contagem (MG) e Osasco (SP), greves de operários paralisam fábricas em protesto ao regime militar.
    A guerrilha urbana começa a se organizar. Formada por jovens idealistas de esquerda, assaltam bancos e seqüestram embaixadores para obterem fundos para o movimento de oposição armada.
    No dia 13 de dezembro de 1968, o governo decreta o Ato Institucional Número 5 ( AI-5 ). Este foi o mais duro do governo militar, pois aposentou juízes, cassou mandatos, acabou com as garantias do habeas-corpus e aumentou a repressão militar e policial.
    história do brasil - ditadura militar Passeata contra a ditadura militar no Brasil   
    GOVERNO DA JUNTA MILITAR (31/8/1969-30/10/1969)
    Doente, Costa e Silva foi substituído por uma junta militar formada pelos ministros Aurélio de Lira Tavares (Exército), Augusto Rademaker (Marinha) e Márcio de Sousa e Melo (Aeronáutica). 
    Dois grupos de esquerda, O MR-8 e a ALN seqüestram o embaixador dos EUA Charles Elbrick. Os guerrilheiros exigem a libertação de 15 presos políticos, exigência conseguida com sucesso. Porém, em 18 de setembro, o governo decreta a Lei de Segurança Nacional. Esta lei decretava o exílio e a pena de morte em casos de "guerra psicológica adversa, ou revolucionária, ou subversiva".
    No final de 1969, o líder da ALN, Carlos Mariguella, foi morto pelas forças de repressão em São Paulo.
    GOVERNO MEDICI (1969-1974)
    Em 1969, a Junta Militar escolhe o novo presidente: o general Emílio Garrastazu Medici. Seu governo é considerado o mais duro e repressivo do período, conhecido como " anos de chumbo ". A repressão à luta armada cresce e uma severa política de censura é colocada em execução. Jornais, revistas, livros, peças de teatro, filmes, músicas e outras formas de expressão artística são censuradas. Muitos professores, políticos, músicos, artistas e escritores são investigados, presos, torturados ou exilados do país. O DOI-Codi (Destacamento de Operações e Informações e ao Centro de Operações de Defesa Interna ) atua como centro de investigação e repressão do governo militar.
    Ganha força no campo a guerrilha rural, principalmente no Araguaia. A guerrilha do Araguaia é fortemente reprimida pelas forças militares.

    O Milagre Econômico
    Na área econômica o país crescia rapidamente. Este período que vai de 1969 a 1973 ficou conhecido com a época do Milagre Econômico. O PIB brasileiro crescia a uma taxa de quase 12% ao ano, enquanto a inflação beirava os 18%. Com investimentos internos e empréstimos do exterior, o país avançou e estruturou uma base de infra-estrutura. Todos estes investimentos geraram milhões de empregos pelo país. Algumas obras, consideradas faraônicas, foram executadas, como a Rodovia Transamazônica e a Ponte Rio-Niteroi.
    Porém, todo esse crescimento teve um custo altíssimo e a conta deveria ser paga no futuro. Os empréstimos estrangeiros geraram uma dívida externa elevada para os padrões econômicos do Brasil.
    GOVERNO GEISEL (1974-1979)
    Em 1974 assume a presidência o general Ernesto Geisel que começa um lento processo de transição rumo à democracia. Seu governo coincide com o fim do milagre econômico e com a insatisfação popular em altas taxas. A crise do petróleo e a recessão mundial interferem na economia brasileira, no momento em que os créditos e empréstimos internacionais diminuem.

    Geisel anuncia a abertura política lenta, gradual e segura. A oposição política começa a ganhar espaço. Nas eleições de 1974, o MDB conquista 59% dos votos para o Senado, 48% da Câmara dos Deputados e ganha a prefeitura da maioria das grandes cidades.
    Os militares de linha dura, não contentes com os caminhos do governo Geisel, começam a promover ataques clandestinos aos membros da esquerda. Em 1975, o jornalista Vladimir Herzog á assassinado nas dependências do DOI-Codi em São Paulo. Em janeiro de 1976, o operário Manuel Fiel Filho aparece morto em situação semelhante.
    Em 1978, Geisel acaba com o AI-5, restaura o habeas-corpus e abre caminho para a volta da democracia no Brasil.
    GOVERNO FIGUEIREDO (1979-1985) 
    A vitória do MDB nas eleições em 1978 começa a acelerar o processo de redemocratização. O general João Baptista Figueiredo decreta a Lei da Anistia, concedendo o direito de retorno ao Brasil para os políticos, artistas e demais brasileiros exilados e condenados por crimes políticos. Os militares de linha dura continuam com a repressão clandestina. Cartas-bomba são colocadas em órgãos da imprensa e da OAB (Ordem dos advogados do Brasil). No dia 30 de Abril de 1981, uma bomba explode durante um show no centro de convenções do Rio Centro. O atentado fora provavelmente promovido por militares de linha dura, embora até hoje nada tenha sido provado.
    Em 1979, o governo aprova lei que restabelece o pluripartidarismo no país. Os partidos voltam a funcionar dentro da normalidade. A ARENA muda o nome e passa a ser PDS, enquanto o MDB passa a ser PMDB. Outros partidos são criados, como: Partido dos Trabalhadores ( PT ) e o Partido Democrático Trabalhista ( PDT ).
    A Redemocratização e a Campanha pelas Diretas Já
    Nos últimos anos do governo militar, o Brasil apresenta vários problemas. A inflação é alta e a recessão também. Enquanto isso a oposição ganha terreno com o surgimento de novos partidos e com o fortalecimento dos sindicatos.
    Em 1984, políticos de oposição, artistas, jogadores de futebol e milhões de brasileiros participam do movimento das Diretas Já. O movimento era favorável à aprovação da Emenda Dante de Oliveira que garantiria eleições diretas para presidente naquele ano. Para a decepção do povo, a emenda não foi aprovada pela Câmara dos Deputados.
    No dia 15 de janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral escolheria o deputado Tancredo Neves, que concorreu com Paulo Maluf, como novo presidente da República. Ele fazia parte da Aliança Democrática – o grupo de oposição formado pelo PMDB e pela Frente Liberal.
    Era o fim do regime militar. Porém Tancredo Neves fica doente antes de assumir e acaba falecendo. Assume o vice-presidente José Sarney. Em 1988 é aprovada uma nova constituição para o Brasil. A Constituição de 1988 apagou os rastros da ditadura militar e estabeleceu princípios democráticos no país.